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A discussão ao redor do valor da Lógica

Breve Histórial 

A discussão sobre a utilidade da Lógica matemática para a Filosofia, é daquelas que volta e meia fazem de novo sua aparição, e nos parece ter a característica de que nela se acham ligadas questões diferentes. Na verdade, aquela disputa se coloca hoje a partir de uma concepção determinada da Lógica, Lógica como teoria matemática dos sistemas formais. Aqueles filósofos mais próximos da tradição filosófica em língua alemã e francesa

vêem na presença da Lógica dentro da Filosofia, concebida aquela como teoria dos sistemas formais, um exemplo de um processo lamentável de cientificismo, e rejeitam o estudo da Lógica, entendida daquela forma, negando sua relevância filosófica. Mas também dentro da filosofia em língua inglesa, na tradição do que é chamado de filosofia da linguagem ordinária, se tem colocado em dúvida a importância da Lógica para a reflexão filosófica. Segundo a visão desses autores, a Lógica, considerada como estudo de diferentes linguagens formais, de sua sintaxe e semântica, teria tanto a ver com a concepção aristotélica dessa disciplina como com a geometria algebrizada e abstrata de nossos dias ou ainda o estudo euclidiano das figuras planas e dos sólidos.

Na sua rejeição à Lógica matemática, todos aqueles filósofos dos dois grupos supracitados fazem suas resistências tradicionais a uma expressão em forma matemática do discurso filosófico. A idéia de expressar more geométrico a Filosofia vem do racionalismo moderno, renasceu com o positivismo lógico e ainda está presente nas diferentes tentativas de construir uma Ontologia formal.

Se queremos abordar em toda sua amplidão a questão da utilidade da Lógica para a Filosofia convém dizer que a História da Filosofia mostra muitas concepções da Lógica, e que hoje mesmo temos entre os lógicos, como veremos adiante, diferenças sobre como deve ser concebida essa disciplina. Convém então atender as diferentes configurações que aquele saber, que chamamos e foi chamado de Lógica, adquiriu no percurso da História do pensamento ocidental. Mas também devemos distinguir a questão da utilidade da Lógica para a Filosofia daquela outra sobre a possibilidade ou conveniência de expressar em forma matemática (more geometrico) o discurso filosófico.

A discussão sobre a relevância da Lógica para a Filosofia, é muito antiga e independe da apresentação contemporânea da Lógica em forma matemática. A História do pensamento filosófico nos mostra quatro situações diferentes: primeiro, temos o caso daqueles filósofos, como Descartes, que negaram a utilidade da Lógica para a Filosofia e até para a ciência em geral, mas consideraram a exposição matemática como o modelo de apresentação para qualquer discurso racional. Segundo, encontramos aqueles filósofos, como Aristóteles, que reconheceram o valor da Lógica e ao mesmo tempo afirmaram a impossibilidade de expressar em forma matemática todo discurso racional. Em terceiro lugar encontramos filósofos como Leibniz que louvaram a Lógica como instrumento para a reflexão filosófica, identificaram ela com uma Ontologia formal e pensaram na possibilidade de expressar em forma matemática todo discurso racional, entre eles o filosófico. Em quarto lugar encontramos o grupo formado pelos filósofos que negaram a utilidade da Lógica para a Filosofia e se mostraram contra qualquer tentativa de expressar em forma matemática o discurso filosófico. Nós situaríamos neste último grupo teóricos contemporâneos da argumentação como Perelman e Toulmin.

Sendo isto assim, a questão de decidir sobre a utilidade da Lógica para a Filosofia se complica porque encontramos, como já dissemos, muitos modos diferentes de entender a natureza da Lógica. Uma forma de conceber sua natureza é como uma teoria formal do raciocínio. O objetivo da Lógica seria dar um inventário das formas válidas de raciocinar isto é, daqueles esquemas de raciocinar que têm a característica de levar de premissas verdadeiras a conclusões verdadeiras. Acontece aqui um duplo processo de abstração. Em primeiro lugar abstraímos os raciocínios do contexto dentro do qual são proferidos. Desse contexto fazem parte aquele que raciocina, provido já de um conjunto de crenças e as pessoas as que se dirige o raciocínio, mesmo que o produtor do raciocínio e seu destinatário sejam às vezes a mesma pessoa, como acontece no caso da meditação consigo mesmo. Assim acontece em qualquer situação argumentativa, na qual temos um argumentador, um argumento e os destinatários para o argumento. Como a Filosofia abandonou, a partir de Aristóteles, em grande medida, a exposição em forma de diálogo, essa complexidade da situação argumentativa não aparece manifesta nos textos filosóficos. Muitas vezes não está explícito quais são os destinatários dos argumentos e é o leitor que deve descobri-lo. A segunda abstração é aquela entre a forma de um raciocínio e seu conteúdo. Essa tarefa exige previamente a distinção entre a forma de uma proposição e seu conteúdo, desde que os raciocínios sejam constituídos de proposições.
Pode ser dado um passo mais e pensar que a forma da proposição pode ser identificada com a forma de algum aspecto da realidade, por exemplo, de um fato. Aparece então uma outra concepção da Lógica, a Lógica como uma Ontologia formal. Uma outra concepção da Lógica é aquela da Lógica como uma teoria das categorias, isto é, uma teoria sobre os conceitos mais básicos e sobre suas combinações. Em Aristóteles encontramos estas três concepções; Lógica como Ontologia, Lógica como teoria formal do raciocínio, Lógica como teoria das Categorias. Por fim, temos que nomear na nossa lista aquela concepção da Lógica que teve vigência na Idade Moderna: a Lógica como uma arte do pensamento, uma arte para julgar sobre as verdades que nos são propostas para o assentimento, uma ars judicandi. E, no final, hoje aparece muito difundida a concepção da Lógica como teoria matemática dos sistemas formais.

Mesmo nos limitando à concepção da Lógica como teoria dos sistemas formais, devemos levar em conta, se o objetivo daquela disciplina é concebido como a caracterização das formas válidas de raciocinar, ou se pelo contrário, o objetivo da Lógica é identificar as verdades lógicas, isto é, aqueles enunciados que são verdadeiros pela sua estrutura e não pelo seu conteúdo, no sentido de que qualquer enunciado que tenha a mesma estrutura que eles é verdadeiro, seja qual for o assunto ao qual se refere. Esses dois objetivos estão estreitamente relacionados e na Lógica de primeira ordem é o Teorema da Dedução o que permite uma aproximação entre eles.

Entretanto, temos formas de apresentar a Lógica que ressaltam principalmente um objetivo. A apresentação axiomática está mais ligada à caracterização das verdades lógicas e àquela em forma de sistemas de dedução naturais à caracterização dos raciocínios válidos.

Vemos assim que nosso tema tem muitos aspectos para considerar. Como já dissemos, na Idade Moderna encontramos autores que colocaram em dúvida a utilidade da Lógica, não apenas para as ciências, mas também para a Filosofia. Quiçá o ataque mais forte contra a Lógica é aquele de Descartes no Discurso do Método, quando afirma que a Lógica (entendida como silogística) só serve para apresentar um conteúdo já sabido e não para a descoberta de novas verdades (AT, VI, 17). Entretanto os cartesianos produziram um manual de Lógica, a Lógica de Port Royal. Nessa obra, os autores Arnuald e Nicole tentaram verter um novo conteúdo dentro de uma forma antiga. A Lógica para eles é uma disciplina sobre como devemos pensar se queremos chegar à verdade, uma normativa do pensamento. Esse manual está dividido em quatro partes: a primeira sobre o conceito ou idéia, a segunda sobre o juízo ou proposição, a terceira sobre o raciocínio, e a quarta sobre o Método. O conceito é concebido como a unidade lógica fundamental a partir da qual são definidas as outras unidades. A Lógica é concebida como arte de pensar, sendo duas as formas de pensamento: julgar o que nos é proposto (tema da Lógica aristotélica concebida como uma teoria formal sobre o raciocínio) e descobrir a verdade (o que explica a presença da quarta seção sobre o Método).

Descartes considerava que a Matemática era um modelo para a Filosofia. Ele tentou adaptar o antigo método de análise e síntese, usado na Geometria grega, às controvérsias metafísicas. Na sua perspectiva aquele método de descoberta e prova, à diferença da Lógica aristotélica, oferecia uma forma de ampliar o conhecimento, realizando assim o ideal de ser uma arte da invenção e do juízo ao mesmo tempo. Mas Descartes não chegou a apresentar o discurso filosófico em forma matemática, o que na época significava apresentá-lo more geométrico, se excetuarmos aquele texto das Respostas às Segundas Objeções onde ele expôs suas respostas em forma axiomática e se, com boa vontade, reconhecemos Os Princípios da Filosofia como um exemplo de exposição matemática. Espinosa foi ainda além de Descartes e na sua Ética expôs todo o seu sistema em forma geométrica.

Encontramos assim, em muitos autores do século XVII, uma rejeição à Lógica aristotélica, junto com a concepção de que a Filosofia deve seguir o método dos geômetras. Descartes, Hobbes, Espinosa são exemplos dessa atitude. O que eles objetavam à Lógica? O fato de ser ela estéril, de não nos dar novos conhecimentos. O que é interessante nesse tipo de ataque à Lógica é que objeções semelhantes às levantadas por aqueles filósofos estão implícitas detrás do desinteresse hodierno de muitas escolas de formação de matemáticos pela Lógica matemática contemporânea. Um matemático que faz Análise, Álgebra ou Geometria, não questionará a Lógica por ser uma teoria matemática. Mas achará muitas vezes seu conteúdo matemático trivial, ou supérfluo. Porque parece difícil encontrar resultados matemáticos nas áreas supracitadas, provados por meio da Lógica matemática, que não tenham sido antes provados por meios diferentes. Por exemplo, se abrirmos o livro de Chang e Keisler, Model Theory, veremos nessa obra resultados em Teoria de Corpos, provados, usando as ferramentas da Teoria de Modelos, mas que no entanto já tinham sido provados muitos antes através das ferramentas usuais da Álgebra.

No século XX um outro ataque à Lógica, não na sua forma da silogística, mas apresentada na forma de um sistema formal, foi desferido por Brouwer . Como Descartes, Brouwer era um matemático e filósofo. Assim como Descartes deu origem a algo que aparentemente era paradoxal, à Lógica cartesiana de Port Royal, do mesmo modo Brouwer deu origem a outro projeto aparentemente incoerente, a Lógica intuicionista. Pois Brouwer tinha pouca estima pela Lógica. Na época de Brouwer já se tinha iniciado o processo de matematização da Lógica a partir dos trabalhos de Frege e Russell. Naquela época a nova Lógica matemática era chamada de Logística. O ataque de Brouwer ia em outra direção que aquele de Descartes: aqui a acusação não era de esterilidade mas de criar entidades através de meios lingüísticos. A Lógica segundo Brouwer tem a ver com a Linguagem, mais precisamente com as regularidades da Linguagem e a existência só pode ser construída pelo pensamento, como no caso da Matemática, ou dada no fluxo da consciência (BROUWER, 1983, p. 66-69). Em qualquer caso a Linguagem não produz objetos. Pelo contrário, os objetos do discurso precedem à linguagem. A Linguagem é concebida por Brouwer como uma veste para a transmissão do pensamento. O pensamento do matemático efetua uma construção e é a Linguagem que transmite essa construção, que não é efetuada por meios lingüísticos.

Continuemos nossa viagem pela História. No século XX filósofos da linguagem ordinária como Strawson e teóricos da argumentação como Perelman e Toulmin, assim como os filósofos mais próximos da tradição hermenêutica, têm questionado a relevância da Lógica para a Filosofia. Nos filósofos da Linguagem ordinária encontramos uma atitude cética ou pelo menos de cautela em relação a utilidade da Lógica para a Filosofia, ao mesmo tempo que uma rejeição à possibilidade de matematização da Filosofia. O ceticismo de Strawson, em relação à Lógica matemática se apóia na incapacidade desta disciplina de tratar formalmente dos aspectos pragmáticos que têm a ver com a aceitação das conclusões do raciocínio informal (STRAWSON, 1993, p. 39). Desde uma outra perspectiva Perelman considerou que a argumentação filosófica tem mais a ver com a Dialética e a Retórica, entendidas de forma aristotélica, disciplinas expostas nos Tópicos, nas Refutações Sofísticas e na Retórica, que com a Lógica, tal como ela está nos Analíticos.

Até aqui escrevemos sobre aqueles que atacaram a Lógica, agora nos referiremos ao seus defensores. Aristóteles reconheceu o valor da Lógica para a Filosofia, mas colocou limites à possibilidade de expressar em forma geométrica o discurso filosófico. Numa célebre passagem da Ética à Nicômacos afirmou:
Nossa discussão será adequada se tiver a clareza compatível com o assunto, pois não se pode aspirar à mesma precisão em todas as discussões. As ações boas e justas que a ciência política investiga parecem muito variadas e vagas. [...] Falando de tais assuntos e partindo de tais premissas, devemos contentar-nos, então, com a apresentação da verdade sob forma rudimentar e sumária; quando falamos de coisas que são verdadeiras apenas em linhas gerais, partindo de premissas do mesmo gênero, não devemos aspirar a conclusões mais precisas. Cada tipo de afirmação, portanto, deve ser aceito dentro dos mesmos pressupostos. [...] Da mesma forma que é insensato aceitar raciocínios apenas prováveis de um matemático também o é exigir de um orador demonstrações rigorosas (Livro I, 1094, b).
No século XVII Leibniz foi uma exceção, pela sua valorização da Lógica, fato que o distingue. Ele defendeu, na sua carta a Gabriel Wagner (GP VII, 514-527) a utilidade da Lógica aristotélica ao mesmo tempo que deu indícios de como reformá-la. Mas Leibniz foi além. Ele louvou o raciocínio que conclui pela forma e não pelo conteúdo. Se houvesse um método para concluir pela forma em todas as questões, as disputas desapareceriam, pensava Leibniz. Mas para isso era preciso antes construir uma Linguagem universal, a característica universal que permitisse eliminar a ambigüidade de todos os nossos conceitos (GP VII 57-64; 163-184; 292299). Uma vez realizado o projeto da característica até a Metafísica poderia ser apresentada more geométrico. Em Leibniz a determinação da forma lógica dos enunciados dependia previamente de uma teoria sobre os conceitos mais básicos (predicamentos) e sobre suas combinações. Na carta a Wagner supracitada ele identificou claramente a diferença entre o raciocínio lógicomatemático, que conclui pela forma e o raciocínio costumeiro nas disputas filosóficas da época.

No método das disputas podemos sempre fazer distinções entre diversos significados de um mesmo conceito. A iteração desse processo, impede que o resultado das disputas filosóficas seja conclusivo. Na matemática podemos concluir com exatidão porque os conceitos matemáticos não se deixam submeter a esse processo de divisão semântica, dado que seu significado é unívoco.

No final, no século XX o positivismo lógico, ao mesmo tempo que ressaltava o valor da Lógica matemática se propôs superar a metafísica pela análise lógica da linguagem. Só aquelas partes da Filosofia que poderiam ser expressadas no formalismo da Lógica matemática teriam valor cognoscitivo. O resto deveria ser descartado.

Escola de Moz

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